Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

Poder, eleições e síndrome da “mosca azul” em tempos de pandemia

Por Luciana Panke [1] 

 

Períodos eleitorais são bastante curiosos. Há uma mistura de agilidade com esquecimento na gestão do espaço público. Parece que prioridades mudam, tensões aumentam e aquela mosquinha azul (BETTO, 2006) do poder ronda mais do que nunca. Em um momento sui generis, como o atual, o contexto pandêmico afeta diretamente a dinâmica eleitoral em seus aspectos diretos como a realização do processo em si, datas, medidas legais, processos sociais e, claro, comunicativos.

Uma questão que não muda é a disputa pelo poder: seja o poder decisório, seja o poder da visibilidade.  Em sua obra, Foucault alerta que o discurso representa a disputa, muitas vezes, pelo poder da fala visível. Diferentes áreas procuram explicar a avidez pelo poder e, na política, a dominação evidenciada pelos regimes totalitários fica menos perceptível sob o viés democrático. Afinal, nem sempre os representantes nas democracias efetivamente espelham as vontades populares ou, na perspectiva da Ciência Política, são as elites políticas que permanecem disputando os espaços decisórios.

A pandemia parece favorecer os mesmos grupos no poder, enfraquecendo as novas vozes. Isso significa que talvez as oportunidades de exposição de novas candidaturas sejam diferenciadas, além de reforçar a visibilidade dos atuais gestores. Se por um lado a tecnologia foi impulsionada com a comunicação via redes sociais digitais, por outro, há de se lembrar que o acesso à Internet no Brasil ainda é limitado.

A crise sanitária, portanto, se tornou um fator divisório em relação às medidas das gestões governamentais, assim como o posicionamento das candidaturas. Governos municipais que não administraram saúde e economia, deixando de lado o bem-estar social, podem ser avaliados de forma diferenciada daqueles que conseguiram gerenciar a crise. Também há de se considerar que a disputa de narrativas digitais aumenta, uma vez que o discurso negacionista e o científico abarcam caminhos distintos de políticas públicas. Na hora da reeleição, a cidadania deverá eleger não apenas quem gerenciou bem o município, mas quem melhor controlou as narrativas que circularam.

O que se vive nas cidades, também se apresenta em outros espaços públicos, onde o voto é a alternativa para o bem comum: sindicatos, associações, universidades, partidos políticos, condomínios residenciais. Um caso real, aparentemente banal, mas que ilustra o que eventualmente ocorre em espaços decisórios maiores: em determinado edifício residencial de classe média, o síndico recebe dois salários mínimos por seus serviços — privilégio —, valor que representa mais que a remuneração individual dos trabalhadores do local — diferenciação de classes. Aquele senhor foi contra que a equipe se alternasse para o trabalho no início da pandemia e, quando questionado, lançou uma enquete junto aos demais moradores – aparente democracia. Ele se referia à moradora que questionava como “moça” — machismo —, ainda que fosse proprietária; e os residentes que formavam parte do conselho fiscal eram chamados de “dr” ou pelo sobrenome. As opções estavam dúbias e a redação favorecia a manutenção das pessoas normalmente, apenas com proteção de máscaras e álcool gel — manipulação das narrativas. As decisões diziam serem tomadas em nome do tal “conselho” e o grupo era composto por homens exatamente do mesmo perfil: profissionais liberais, vários aposentados, renda acima da média nacional, brancos, casados — elite política. Talvez o que se chame por aí de “cidadão de bem”. Resultado: os trabalhadores continuaram suas rotinas, enquanto o síndico governava, boa parte do tempo, de sua casa na praia — regalia. No mês de eleições, convocou assembleia presencial, mas não convocou inscrição de chapas e, sem promover nenhuma enquete, não cobrou a taxa de condomínio daquele mês — compra de votos. Quem mora naquele prédio, em pleno mês eleitoral, simplesmente “ganhou” a taxa de condomínio de “graça”. Na assembleia esvaziada pela pandemia, o síndico se reelegeu, sem estar na pauta a eleição — manipulação —, sem outra chapa inscrita, uma vez que não houve convocatória, e, passados dois meses, o cidadão apresentou uma proposta de aumento da taxa condominial.

O relato acima ilustra o que é visto na política: disputa pela manutenção do poder, exclusão de vozes divergentes, diminuição de participação feminina com a moradora sendo literalmente inominada, o mesmo grupo conduzindo as narrativas e tomando as decisões coletivas, a apresentação de vantagens milagrosas em véspera eleitoral e, posteriormente, o rompimento da promessa.  A mosca azul chega em lugares que nem sempre se imagina, não apenas em governos.

Quando se fala em política, portanto, assim como a consequente participação nos espaços decisórios, também é de extrema importância ter consciência que as dinâmicas de poder se reproduzem em espaços distintos. Com o discernimento, é possível atuar em frentes distintas como a participação em grupos convergentes, apoiar candidaturas que representem o ponto de vista desejado, não ser conivente com manipulações e outros posicionamentos que não coadunam com seu ponto de vista. Isso é fazer política cidadã consciente, afinal, quando a mosca azul do poder pica, pelo jeito há pessoas que ficam vidradas a ponto de fazer qualquer coisa para manter o reinado.

 

[1] Luciana Panke é doutora em Ciências da Comunicação, professora da Universidade Federal do Paraná, líder fundadora do Grupo de Pesquisa Comunicação Eleitoral. Instagram @profalucianapanke | Twitter @lupanke | Youtube @canalpanke

 

Referências bibliográficas:

BETO, Frei. A mosca azul: reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro, Rocco: 2006.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.