Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

A pandemia da desinformação e a credibilidade jornalística

Por Vivian Lemos*

Já é chover no molhado dizer que temos uma pandemia de Covid-19. Até o fechamento deste artigo, o Brasil tinha registrado 1.300 mortes por dia, um novo recorde, de acordo com levantamento feito por meio de uma parceria inédita entre G1, O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL, que passaram a trabalhar de forma colaborativa após os constantes atrasos e até mesmo da não divulgação dos dados sobre a pandemia de Covid- 19 pelo Ministério da Saúde. Este é apenas mais um sintoma da outra pandemia que vem se delineando no front e ela é a da desinformação.

Mas a desinformação (ou fake news) é uma invenção da atualidade? Certamente não. Um projeto do International Center for Journalists propõe uma linha do tempo intitulada A Short Guide to History of Fake News[1] (Um Breve Guia da História das Fake News), em que podemos ver relatos das notícias falsas com caráter político remontando ao ano 44 a.C., com Otávio (que viria a ser o imperador romano Augusto) promovendo uma campanha de difamação contra Marco Antônio, acusando o amante da rainha egípcia Cleópatra de ser um mulherengo bêbado.

Se desde priscas eras as fake news de caráter político são produzidas, o que mudou? A expansão das tecnologias de informação e comunicação permite a rápida propagação a baixo custo das campanhas de desinformação.

Um em cada cinco adultos norte-americanos diz que consome notícias pelas redes sociais e que é predisposto a compartilhar essas informações. (PEW RESEARCH CENTER, 2018). No Brasil, 58% dos entrevistados compartilham notícias via redes sociais, e-mails ou aplicativos de mensagens. Ainda, 87% dos participantes da pesquisa afirmam que sua fonte primária de informações é online. O Whatsapp se tornou a rede prioritária para discussão e compartilhamento de notícias para 55% dos entrevistados. (REUTERS INSTITUTE, 2019).

Cientistas da UFMG apontaram que política era o tema da maioria das fake news compartilhadas via Whatsapp. Analisou-se, por um ano, 120 grupos da rede e comprovou-se que notícias falsas sobre política atingiam mais usuários se comparadas a outros temas. Também identificaram um aumento significativo das fake news em período próximo às eleições. O levantamento coletou 1,7 milhão de mensagens trocadas por 30,7 mil usuários nesses grupos entre outubro de 2017 e novembro de 2018. Em 78 dos 120 grupos, a discussão era focada em política. (MONNEREAT, 2019).

Para um ofício em que a credibilidade é um dos bens simbólicos mais preciosos, o jornalismo vê-se diante de um desafio em uma realidade em que o termo pós-verdade foi alçado à palavra do ano em 2016, pela Universidade de Oxford. Pós-verdade seria um termo “relativo a ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais.” (OXFORD UNIVERSITY, 2016).

Os fatos objetivos perdem a importância em tempos de pós-verdade. Um dos pontos de partida dessa discussão pode ser os chamados “filtros bolha”. Eles criariam um universo personalizado de informações para cada um de nós. E isso altera drasticamente o modo como consumimos conteúdo. (PARISER, 2012). Nesta condição, “o monitor de nossos computadores é uma espécie de espelho unilateral que reflete tão só e apenas nossos próprios interesses, enquanto os algoritmos observam tudo o que clicamos”. (SANTAELLA, 2018). Sunstein afirma que a Internet é um terreno fértil para a propagação de discussão entre pessoas com visões de mundo parecidas (like-minded people). Nessas “câmaras de eco”, os indivíduos são significativamente expostos a opiniões similares às suas.

Este cenário favorece o clima efervescente de crescente desconfiança da imprensa, o “inimigo comum”. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mandou repórteres calarem a boca no dia 5 de maio deste ano, quando foi questionado sobre as recentes mudanças na Polícia Federal. Bolsonaro ainda atacou a Folha de São Paulo, chamando o jornal de “canalha”, “patife” e “mentiroso”. É bom lembrar que, ainda durante a campanha presidencial, o então candidato Jair Messias Bolsonaro, classificou o veículo como “a maior fake news do Brasil”.

Com a escalada do discurso “a imprensa é inimiga do Brasil”, a violência extrapola o campo do simbólico e se efetiva na realidade contra os jornalistas. No dia 25 de maio, a Folha de São Paulo anunciou suspensão temporária da cobertura jornalística na porta do Palácio da Alvorada, por falta de segurança a seus profissionais, que frequentemente vem sendo atacados por apoiadores do presidente. O movimento foi seguido pelo grupo Globo e Band.

É interessante considerar aqui que “a credibilidade constituída de um orador precisa preexistir à percepção do interlocutor, mas só ganha sentido dentro de uma relação intersubjetiva” (LISBOA, 2012, p.15) e esta relação é abordada pelo contrato comunicacional midiático, que pressupõe a cointencionalidade. “Toda troca linguageira se realiza num quadro de cointencionalidade, cuja garantia são as restrições da situação de comunicação.” (CHARAUDEAU, 2013, p. 68).

Esse “acordo” social e historicamente estabelecido, nos impõe que “devemos acreditar que isso que se diz é verdade, e que aconteceu de fato assim mesmo, pois se um jornal, digamos, não tem credibilidade, suas informações perdem o sentido virtual e não servem para informar.” (ALCINA, 2009, p. 48). E é por toda a expectativa em torno da credibilidade que o fazer jornalístico supostamente deve carregar, que cabe discutir se há, em tempos de produção massificada de fake news, uma alteração nesse contrato comunicacional tácito, celebrado entre audiência e veículos de comunicação.

O jornalista não é o único ator da instância de produção, mas é seu personagem principal. O papel do jornalista é cercado por contradições, pois em nome da credibilidade, ele se colocaria como apenas um mediador entre “os acontecimentos do mundo e sua encenação pública, assumindo-se como a testemunha mais objetiva possível.” (CHARAUDEAU, 2013, p. 78).

Mesmo com todas essas contradições, a credibilidade é a moeda dominante nesse contrato tácito. Se a credibilidade sai de cena, não há mais motivo para afiançar o contrato de comunicação tal qual o exposto anteriormente. Na definição de Lisboa, “podemos dizer que a finalidade do jornalismo é produzir relatos sobre o mundo e sobre o homem, de acordo com critérios de notabilidade e relevância e utilizando estratégias para justificar a veracidade do que se diz.” (2012, p. 27). O jornalismo forneceria garantias de sua credibilidade justamente ao cumprir com o papel que lhe é designado. E é a percepção por parte do público consumidor dos elementos contidos constituintes do ethos jornalístico que forneceria as evidências necessárias para a crença no trabalho jornalístico. (LISBOA, 2012)

A produção e disseminação das fake news são um tema em voga neste momento. As recentes operações da Polícia Federal contra empresários e blogueiros é o mais recente episódio que envolve a suposta rede de produção de fake news favoráveis à então campanha presidencial e, agora, o governo. Em tempos de fake news, o próprio trabalho jornalístico carece de credibilidade. Em alguns momentos, o jornalismo é quase que uma metalinguagem na defesa de seu ethos. Um exemplo são as reportagens produzidas pelo site Intercept no final de 2019 a respeito de trocas de mensagens entre o então juiz Sérgio Moro e testemunhas e membros do Ministério Público durante a operação Lava Jato. Para defender a legitimidade de sua produção jornalística, o veículo publicou notas explicando todo o processo de apuração, e até mesmo se associou a outros veículos, como Folha de São Paulo e Veja para dar mais visibilidade às reportagens. É importante analisar esse cenário, que definitivamente trará ainda mais implicações para a produção jornalística atual.

*Vivian Lemos é doutoranda em Comunicação pela UFPR, Mestre em Direitos Humanos e Políticas Públicas, especialista em Comunicação Online, Marketing Digital e Publicidade na Internet, integrante do grupo de pesquisa em Comunicação Eleitoral da UFPR, jornalista e professora universitária.

[1] Disponível em https://www.icfj.org/sites/default/files/2018-07/A%20Short%20Guide%20to%20History%20of%20

REFERÊNCIAS:

ALCINA, M. R. A Construção da Notícia. Petrópolis: Vozes, 2009

CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. 2ª. ed. São Paulo: Contexto, 2013.

LISBOA, S. Jornalismo e a credibilidade percebida pelo leitor: independência, imparcialidade, objetividade, honestidade e coerência. Dissertação de Mestrado – UFRGS. Porto Alegre. 2012.

MONNEREAT, A. Política é principal assunto das fake news no WhatsApp. O Estado de São Paulo, 12 maio 2019. Disponivel em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,politica-e-principal-assunto-das-fake-news-no-whatsapp,70002825358>.

OXFORD UNIVERSITY. Post-truth. Lexico Powered by Oxford, 2016. Disponivel em: <https://www.lexico.com/en/definition/post-truth>.

PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

PEW RESEARCH CENTER. Social media outpaces print newspapers in the U.S. as a news source. Pew Research Center, 10 dezembro 2018. Disponivel em: <https://www.pewresearch.org/fact-tank/2018/12/10/social-media-outpaces-print-newspapers-in-the-u-s-as-a-news-source/>.

REUTERS INSTITUTE. Reuters Institute Digital News Report 2019. Reuters Institute, 2019. Disponivel em: <https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/sites/default/files/2019-06/DNR_2019_FINAL_1.pdf>.

SANTAELLA, L. A pós-verdade é verdadeira ou falsa? São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2018. Não paginado.