Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

A ‘facada’ de Donald Trump e as estratégias do populismo de extrema direita

 

Por Érica Cristina Verderio Bianco [1]

 

O título deste ensaio faz alusão ao incidente que impossibilitou o presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido), então candidato ao cargo pelo Partido Social Liberal (PSL), de participar dos debates das eleições presidenciais de 2018. No dia 06 de setembro daquele ano, às vésperas do 196º aniversário do grito de independência do Brasil, Bolsonaro foi vítima de um atentado a faca praticado por Adélio Bispo, um homem com problemas mentais que agiu por motivação pessoal. Por causa da longa recuperação de sua saúde, mas também por estratégia política – como ele próprio admitira – o candidato que liderava a corrida presidencial participou apenas de dois debates do 1º turno das eleições. Os debates do 2º turno, disputado contra o candidato Fernando Haddad (PT), foram cancelados justamente pela ausência de Bolsonaro, que apresentou sucessivos atestados médicos para não enfrentar seu adversário nas sabatinas televisivas.

Coincidentemente, o presidente estadunidense Donald Trump, candidato à reeleição ao cargo em 2020 pelo Partido Republicano, também está temporariamente impossibilitado de comparecer a debates presenciais por questões relacionadas à saúde. Trump testou positivo para o novo coronavírus (SARS-CoV-2) no dia 02 de outubro, três dias após o primeiro debate contra seu adversário Joe Biden, do Partido Democrata. Seguindo os protocolos internacionais de prevenção de contágio por SARS-CoV-2, o candidato republicano precisa cumprir uma quarentena de 14 dias após o diagnóstico antes de qualquer compromisso público na presença de outras pessoas. Ou seja, Trump não pode participar de encontros, reuniões ou debates até o dia 16 de outubro, um dia após a data para a qual estava agendado o próximo debate entre os candidatos à Casa Branca. Em uma tentativa de contornar o problema, a comissão responsável pela organização dos debates entre os presidenciáveis decidiu pelo formato virtual e, assim, a data da próxima sabatina seria mantida no dia 15 de outubro. No entanto, Donald Trump se negou a participar de debates nesse formato, alegando que seria um desperdício de tempo. Dessa forma, Trump adota a mesma estratégia de Jair Bolsonaro ao não debater ideias frente a frente com seu adversário. A afirmação de que se trata de uma estratégia deliberada do candidato baseia-se no resultado de pesquisas de opinião realizadas com eleitores estadunidenses logo após o primeiro encontro dos candidatos. Para a maioria dos entrevistados, o democrata Joe Biden teve melhor desempenho, ainda que ambos tenham decepcionado os espectadores. Há claros indícios, portanto, de que o republicano esteja usando sua doença para não ter de debater com seu adversário, assim como fez Jair Bolsonaro em 2018.

Além de um subterfúgio, Trump transformou sua doença em uma espécie de reality show, de modo semelhante à atuação do candidato Bolsonaro durante o tempo em que esteve se recuperando do atentado a faca. O presidente norte-americano não abandonou os perfis e páginas que mantém nas plataformas de redes sociais durante o período em que esteve no hospital. Pelo contrário, ele preservou a proximidade com seus seguidores, publicando diversas fotos e vídeos e transformando o momento da alta hospitalar em um acontecimento midiático. Agindo dessa forma, o presidente dos Estados Unidos cria com o público o mesmo tipo de laço criado pelas celebridades (WESCHENFELDER, 2019). A liturgia do cargo e a segurança sanitária são abandonadas em favor do estabelecimento de vínculos afetivos com os cidadãos/seguidores. Ainda, ao expor publicamente a doença e seu processo de recuperação, ele evoca o arquétipo do herói/mártir, acionando o imaginário popular, e assume a figura do presidente que sofreu com o coronavírus, do mesmo modo como sofreram tantos outros estadunidenses, mas foi curado, dando demonstração de sua força e resistência, sua invencibilidade.

 

Capturas de tela de um vídeo publicado em 6 de outubro, no perfil TeamTrump, no Instagram, que conta com 1,2 milhão de seguidores. Dois dias depois, o vídeo, que representa Donald Trump marcando um "Touchdown" contra o coronavírus, já estava com 233 mil visualizações.

Capturas de tela de um vídeo publicado em 6 de outubro, no perfil TeamTrump, no Instagram, que conta com 1,2 milhão de seguidores. Dois dias depois, o vídeo, que representa Donald Trump marcando um “Touchdown” contra o coronavírus, já estava com 233 mil visualizações.

Neste ponto, surge outra conexão entre as estratégias e táticas comunicacionais de ambos os presidentes. Tanto um quanto o outro faz parte do grupo minoritário de líderes nacionais que negam a gravidade da pandemia, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, se aproveitam da fragilidade das pessoas para oferecer a cura milagrosa. Contudo, nem a cloroquina (no caso de Bolsonaro) nem a hidroxicloroquina (no caso de Trump) tiveram eficácia clínica comprovada no tratamento de COVID-19. Se, diante da falta de evidências científicas, Trump abandonou há meses a hidroxicloroquina, Bolsonaro insiste na narrativa segundo a qual o tratamento precoce com cloroquina é a cura mágica para a infecção causada pelo SARS-CoV-2. Em um dos atos de seu reality show, o presidente brasileiro ergueu uma caixa do medicamento diante de um grupo de apoiadores, como quem levanta um troféu. A ‘plateia’ respondeu a contento, cantando uma paródia da música Florentina, do deputado e palhaço Tiririca: ‘Cloroquina lá do SUS’. Uma inequívoca demonstração dos laços de proximidade e afeto entre líder e liderados. O ato ocorreu dias após Bolsonaro ter testado positivo para o novo coronavírus. Donald Trump, por outro lado, afirmou ter sido curado por um fármaco ainda em fase de testes, o REGN-COV2, e aproveitou para transformá-lo em sua nova panaceia, prometendo fornecê-lo gratuitamente a todos os estadunidenses que vierem a adoecer de COVID-19 (ainda que em seu país não haja um sistema gratuito e universal de saúde, como é o caso brasileiro). O candidato à reeleição disse acreditar que ter contraído o vírus foi uma “bênção de Deus” porque, em suas palavras, ele teria sido o canal para a revelação de uma suposta cura milagrosa. Assim como Bolsonaro, Trump também possui uma profunda conexão com os crentes de seu país, mas neste caso o que se sobressai é a figura do herói/mártir, o líder abnegado capaz de se sacrificar para o bem de seu povo (AZEVEDO JUNIOR; BIANCO, 2019).

Dessa forma, a atuação de ambos diante da pandemia mundial de SARS-CoV-2 revela, ato após ato, as estratégias do populismo da nova direita, que mantém a lógica do confronto e o culto ao líder messiânico. No caso dos Estados Unidos, é o velho delírio conspiracionista de um plano secreto comunista para dominar o mundo que sustenta Donald Trump como o salvador da nação. Nessa lógica, para uma parcela da população não importa se ele não comparece a debates eleitorais ou se ele não tem propostas e projetos concretos para um próximo mandato. O que importa para seus eleitores é que ele se coloca como o ‘enviado de Deus’ para salvar a América do globalismo e do comunismo chinês.

Por fim, se os debates televisivos foram essenciais para o processo eleitoral em uma época em que sociedade e candidatos só se encontravam presencialmente, em ambientes controlados, ou por intermédio da mídia corporativa, surge a reflexão sobre o lugar a que foram relegados pela sociedade hipermidiatizada, em que celebridades de todos os tipos e seus seguidores se encontram diretamente, sem intermediários, nas plataformas de redes sociais. Questiona-se a atualidade de seu formato, a necessidade de adaptação às lógicas e linguagens das mídias digitais, de modo que um importante instrumento para a democracia – o debate de ideias, propostas e projetos – não caia em desuso. Afinal, o caso brasileiro de 2018 mostrou que o ‘encastelamento’ proporcionado pela plataformização da comunicação é conveniente ao populismo, que busca confronto em vez de debates, e não há motivos para que, estando no poder ou à frente na corrida eleitoral, os populistas se arrisquem em sabatinas televisivas que deixariam às claras sua falta de capacidade para governar grandes nações em um estágio complexificado do capitalismo.

 

 

[1] Doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestra em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná (2019), é integrante do grupo de pesquisa CEL (Comunicação Eleitoral) da mesma Instituição. É graduada em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2006). Técnica em Comunicação Social/Jornalismo na Defensoria Pública da União desde 2010.

 

Referências:

 

AZEVEDO JUNIOR, Aryovaldo de Castro; BIANCO, Erica Cristina Verderio. O processo de mitificação de Bolsonaro: Messias, presidente do Brasil. Revista Eco-Pós, [S.L.], v. 22, n. 2, p. 88-111, 6 out. 2019. Revista ECO-Pos. http://dx.doi.org/10.29146/eco-pos.v22i2.26253. Disponível em: https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/5. Acesso em: 11 out. 2020.

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