Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

Desinformação e liberdade de expressão: afinal, há um direito à “notícia falsa”?

Por Ana Claudia Santano[1]

Nas últimas semanas, um dos debates mais frequentes é sobre o Projeto de Lei envolvendo as fake news (PL 2630/20), expressão estrangeira que se refere à notícia falsa e à desinformação. Com a profusão da vida tecnológica e o peso do mundo virtual em nossas vidas, essa temática ganha cada vez mais relevância, ainda mais quando se relaciona com política e democracia.

Há muitas controvérsias no PL, mas uma delas é sobre a liberdade de expressão e de informação que eventualmente podem ser alcançadas por essa norma. Não se abordará aqui os detalhes da lei que se pretende aprovar, mas sim será proposta aqui uma reflexão: afinal, a liberdade de expressão engloba a desinformação? Ou ainda, temos nós o direito à informação falsa?

Não cabem dúvidas que as liberdades fazem parte do conjunto mais tradicional de direitos, tendo sua origem marcante ao longo dos séculos XVI e XVII com o seu registro em vários documentos históricos, como a Magna Carta, Bill of Rights, dentre outros. Representando uma visão de mundo também liberal, a ideia da liberdade de expressão e de informação é um símbolo democrático de manifestação individual de ideias e de opiniões, presentes em praticamente todos os tratados internacionais de direitos humanos e na Constituição Federal de 1988.[2]

Dentro dessa perspectiva, há a intenção de garantia de pluralidade de ideias, de controle dos governantes, de socialização das pessoas em comunidade. Aqui são incluídas opiniões, convicções, comentários, avaliações, julgamentos, mensagens, juízos, propagação de ideias e, principalmente notícias sobre fatos. Assim, a priori, tudo isso está incluído.

Uma das primeiras indagações que podem surgir é: no Brasil, há o que se conhece por “mercado livre de ideias”, conforme pregava John Stuart Mill[3], clássico liberal?

Não parece ter sido esta a opção da Constituição de 1988. Há contornos destas liberdades que devem ser observados, como é a vedação ao anonimato dentro da liberdade de expressão para que seja possível impor eventual indenização ou direito de resposta; bem como há garantias para o exercício dessas liberdades, como o sigilo de fonte no caso da liberdade de imprensa, quando necessário ao exercício profissional, assim como a proibição de censura de natureza ideológica, política e artística. Contudo, em qualquer desses casos, não optou o sistema brasileiro por incluir no âmbito das liberdades a apologia ao discurso do ódio e da violência[4], alinhando-se com o amplo entendimento internacional de que tais manifestações podem causar tragédias no mundo real[5], como é o caso dos genocídios que quase sempre são precedidos de discursos contra uma minoria identificada como “inimiga”. O caso contemporâneo de Mianmar e Rohingyas é um dos muitos exemplos do poder do discurso do ódio atrelado às novas tecnologias e à desinformação massificada.[6]

Por outro lado, ainda que sejam direitos eminentemente individuais, a liberdade de expressão e de informação causam impacto direto no coletivo, já que se assume que ninguém fala para si mesmo, mas deseja propagar a sua mensagem. Essa é uma perspectiva que vem sendo aplicada pela Justiça Eleitoral em casos envolvendo desinformação, notícias falsas e redes sociais.[7]

A doutrina constitucionalista, por sua vez, entende que a liberdade de expressão (que se refere a ideias e que cada um pode ter a sua), assim como de informação não são o mesmo direito, porque este último tem o compromisso com a imparcialidade e com a busca da verdade dos fatos, e não há como admitir que cada um tenha ou construa um fato para chamar de seu.[8] É possível, aqui, haver várias versões sobre fatos, mas não fatos diferentes ou pessoais. Nesse sentido, não há um direito a difundir informação falsa e que se sabe ser falsa, não estando isso dentro da liberdade de expressão porque justamente possuem a intenção de falsear fatos.[9]

Aqui seria possível, portanto, sustentar que a verdade é um limite à liberdade de expressão. Segundo Konrad Hesse, informações falsas não são protegidas pela Constituição porque conduz a uma “pseudo-operação da formação da opinião” e quebra a função social da liberdade de informação, porque esta sugere “colocar a pessoa sintonizada com o mundo que a rodeia” e que ela possa se desenvolver com autonomia toda a sua personalidade, algo que se vê dificultado com a informação falsa.[10]

Dentro dessa perspectiva, sequer se pode dizer que há um direito ao acesso à informação falsa ou de receber notícias falsas, porque justamente escapa do direito de ser informado, na linha exposta acima.

Assim, respondendo as perguntas iniciais, a liberdade de expressão pode englobar a desinformação, já que essa pode não ser exatamente falsa (pode ser uma informação antiga, mas divulgada como atual, por exemplo) e desde que não faça apologia à violência ou propague discurso de ódio, não há compromisso com a verdade quando se expressa uma opinião. No entanto, isso não é assim quando se fala da liberdade de informação, pois esta, tendo relação com a verdade dos fatos, não há como distorcê-los e, menos ainda, admitir que a sociedade forme suas opiniões com base em notícias falsas.

[1] Doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca, Espanha. Período de pesquisa pós-doutoral em Direito Público Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e em Direito Constitucional pela Universidad Externado, Colômbia. Professora do Programa de Pós-graduação em Direitos Fundamentais e Democracia do Centro Universitário Autônomo do Brasil – UniBrasil. Curitiba, Paraná, Brasil.

[2] BARCELLOS, ANA PAULA DE. Intimidade e Pessoas Notórias. Liberdades de Expressão e de Informação e Biografias. Conflito entre Direitos Fundamentais. Ponderação, Caso Concreto e Acesso à Justiça. Tutelas Específica e Indenizatória. Direito Público, [S.l.], v. 11, n. 55, maio 2014. p. 57. Disponível em: <https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/2372/1236>. Acesso em: 10 jul. 2020.

[3] MILL, John Stuart. Ensaio sobre a liberdade. São Paulo: Editora Escala, 2006. p. 38 e ss.

[4] Mendes, Gilmar Ferreira; et al. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais, Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 188-189.

[5] HC 82.424, D] de 19-3-2004, Rel. Min. Maurício Corrêa.

[6] UN NEWS. Causes of Rohingya refugee crisis originate in Myanmar; solutions must be found there, Security Council told. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2018/02/1002612> Acesso em 28 maio, 2019.

[7] Ver §2.º, art. 28, da Resolução 23.551/2017, TSE, que: § 2º As mensagens eletrônicas enviadas consensualmente por pessoa natural, de forma privada ou em grupos restritos de participantes, não se submetem ao caput deste artigo e às normas sobre propaganda eleitoral previstas nesta resolução (Lei nº 9.504/1997, art. 57-J).

[8] BARCELLOS, ANA PAULA DE. Intimidade e Pessoas Notórias. Liberdades de Expressão e de Informação e Biografias. Conflito entre Direitos Fundamentais. Ponderação, Caso Concreto e Acesso à Justiça. Tutelas Específica e Indenizatória. Direito Público, [S.l.], v. 11, n. 55, maio 2014. p. 59. Disponível em: <https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/2372/1236>. Acesso em: 10 jul. 2020.

[9] CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de informação e liberdade de expressão, 1999, p. 24.

[10] Hesse, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1 998, p. 304.