Por Aurelio Munhoz*
A escalada mundial do Covid-19, conhecido popularmente como coronavírus, suscita uma análise relevante sobre a apropriação que muitos detentores de mandato eletivo fazem de acontecimentos de ampla repercussão midiática para renovar a orientação ideológica das suas narrativas e fidelizar seu eleitorado.
Foi assim que no Brasil, assim como em muitas nações, governantes utilizaram o surto mundial de coronavírus para adotar um discurso e uma prática marcados por duas características fundamentais: o populismo e o anticientificismo.
Foi o que ocorreu em 15 de março na Praça dos Três Poderes, em Brasília, durante as manifestações promovidas por movimentos de direita e de extrema direita – em pelo menos 13 Estados brasileiros – em defesa do governo do presidente Jair Bolsonaro e contra o STF (Supremo Tribunal Federal) e o Congresso Nacional.
Os protestos foram promovidos na mesma semana em que o Palácio do Planalto anunciou que o secretário de Comunicação do Governo, Fábio Wajngarten, e outras cinco pessoas contraíram coronavírus – conhecido cientificamente como Covid-19. O grupo havia viajado aos EUA para encontro com o presidente Donald Trump, junto com Jair Bolsonaro.
Embora os exames feitos no presidente brasileiro tenham sido negativos para o coronavírus, as autoridades médicas decidiram submeter Bolsonaro a um período de quarentena. Seguiram, assim, orientação científica da OMS (Organização Mundial da Saúde), segundo a qual pessoas com mais de 60 anos (caso do presidente da República, que tem 64 anos) e doentes crônicos são os mais vulneráveis ao Covid-19. Por isso, devem buscar isolamento para evitar o contágio pela doença.
Em um dos momentos mais emblemáticos das manifestações, Bolsonaro desrespeitou estas regras e – sem máscaras ou luvas, mas com a camisa da CBF – abandonou a quarentena para se juntar aos seus apoiadores, em frente ao Palácio do Planalto. Lá, preocupado em mostrar identificação com seus aliados, trocou apertos de mão e utilizou celulares de seguidores para fazer selfies.
No seu discurso, Bolsonaro reforçou este posicionamento populista com uma longa frase: “Não vou viver preso dentro do Alvorada. Se eu resolvi apertar a mão do povo, é um direito meu, eu vim do povo. Tenho obrigação de saudar o povo, na alegria e na tristeza”, comentou o presidente, em entrevista à imprensa, reproduzida pelo portal O Antagonista.
O posicionamento de Bolsonaro pode ser explicado por pelo menos dois autores que discutem a comunicação governamental e a imagem pública de gestores e líderes políticos. No caso da comunicação governamental, é esclarecedor o posicionamento dos cientistas políticos Mario Riorda e Luciano Elizalde sobre o tema. Para ambos, no contexto da comunicação governamental – muitos dos políticos “vivem em campanha permanente” (RIORDA e ELIZALDE, p. 38).
É possível encontrar paralelo entre esta tese e a decisão de Bolsonaro de ir ao encontro dos manifestantes, contrariando orientação médica para transmitir – ostensivamente – uma suposta sintonia do presidente com seu eleitorado mais radical, que também desrespeitou a recomendação de evitar concentrações públicas como medida preventiva contra o coronavírus. Tudo na perspectiva eleitoral, já que Bolsonaro justificou seu apoio ao grupo com a justificativa de não abandonar seu eleitorado, mesmo diante da grave ameaça de contaminação pelo coronavírus.
Já para a discussão sobre imagem pública, uma referência fundamental é Maria Helena Weber. Para ela, o processo de construção da imagem é vital para o reconhecimento e a visibilidade do que chama de constituição dos “sujeitos políticos”. É assim que, segundo Weber, “a cobiça por uma imagem pública favorável sintetiza o movimento da política contemporânea, que faz da sua medição indicador de qualidade, credibilidade, nas disputas de manutenção e conquista de poder” (WEBER: p 297).
Encontra-se aqui uma sustentação teórica consistente que embasa o propósito do presidente da República de fortalecimento da sua narrativa e da sua imagem de líder carismático “corajoso” e plenamente identificado com seu eleitorado, na medida em que desafiou as recomendações médicas para se abraçar com os manifestantes.
O outro aspecto apontado neste ensaio é o anticienticicismo do presidente, revelado na seguinte frase, também repetida à imprensa, no caso, ao portal El País: “Se eu falar que este vírus está superdimensionado, vai dar manchete neste lixo chamado Folha de S. Paulo, fora outros jornais”, afirmou, repetindo discurso semelhante ao que havia adotado no dia 10, quando disse: “A pequena crise do coronavírus é mais fantasia e não isso tudo que a mídia propaga”.
Na perspectiva do anticientificismo, é fundamental a leitura que o historiador Carlos Zacarias da Sena Junior traz sobre o tema. Para ele, a postura de Bolsonaro e seus seguidores reflete o desejo do grupo de obter hegemonia narrativa no discurso público e midiático, por meio da desqualificação dos grupos que podem enfrentá-los no campo das idéias, como os intelectuais e cientistas. “É, portanto, por temer a ciência e os cientistas, que trabalham em junção com a democracia, o que pressupõe a crítica, que um governo com o de Jair Bolsonaro conspira permanentemente contra o conhecimento” (SENA JUNIOR, pág. 32).
Ainda de acordo com o autor, o negacionismo de Bolsonaro objetiva também refundar a História, estabelecendo outra “verdade”, mesmo contra todas as evidências, fatos e comprovações. O presidente é reincidente nesta postura, aliás. Agiu assim ao negar a brutalidade do regime militar, nos anos de chumbo, de 1964 a 1985. “Em linha de continuidade com o negacionismo sobre o golpe de 1964 e a ditadura que lhe seguiu (1964-1985), o projeto bolsonarista tenciona atacar os historiadores e toda a historiografia até aqui consolidada sobre o assunto, inclusive aquela que é chamada de revisionista, apenas com o fito de estabelecer uma outra “verdade”, a que emana da sua caneta Bic” (SENA JUNIOR, pág. 44).
Os limites estreitos este ensaio nos impedem de ir além na reflexão sobre o tema. Mas os aspectos abordados nesta análise parecemos suficientes para dar conta de interpretar, em linhas gerais, na perspectiva científica, o posicionamento do presidente da República e seus seguidores. A complexidade do tema, porém, exige um estudo mais detalhado, que nos propomos a executar em um novo artigo.
Este artigo não reproduz, necessariamente, a opinião do CEL.
*Aurélio Munhoz é jornalista, especialista em Sociologia Política e em Comunicação Organizacional. Aluno do Mestrado em Comunicação, da Universidade Federal do Paraná. Membro do Grupo de Pesquisa Comunicação Eleitoral (CEL/UFPR)
Orientador: Prof Dr Ary Azevedo Junior
Referências bibliográficas:
Bolsonaro rompe isolamento e vai a atos contra o Congresso em meio à crise do coronavírus. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-15/bolsonaro-rompe-isolamento-e-endossa-atos-contra-congresso-em-meio-a-crise-do-coronavirus.html. Acesso em 16 de março de 2020.
Eu não vou viver preso no Palácio da Alvorada. Disponível em https://www.oantagonista.com/brasil/eu-nao-vou-viver-preso-no-palacio-da-alvorada-diz-bolsonaro/. Acesso em 15 de março de 2020.
SENA JUNIOR, Carlos. Cadernos do GPOSSHE On-line. v. 2 n. Especial (2019): A Ciência diante do Obscurantismo. Obscurantismo e Anticientificismo no Brasil Bolsonarista: Anotações Sobre a Investida Protofascista Contra a Inteligência e a Ciência no Brasil. Disponível em https://revistas.uece.br/index.php/CadernosdoGPOSSHE/article/view/1987. Acesso em 16 de março de 2020.
RIORDA, Mario; ELIZALDE, Luciano.Planificación estratégica de la comunicación gubernamental: realismo e innovación. In ELIZALDE, Luciano; RIORDA, Mario (Eds). Comunicación gubernamental 360. Buenos Aires: La crujía, 2013.
WEBER, Maria Helena. Imagem Pública. In RUBIN, Antonio Albino Canelas (org).
Comunicação e Política – conceitos e abordagens. Unesp. São Paulo, 2004.