Por Annie Martins [1]
31 de Agosto de 2016. Quarta-feira. Anúncio do impeachment da então presidenta do Brasil Dilma Rousseff. Estamos em 2020. Quatro (04) anos da retirada do cargo da primeira presidenta mulher do Brasil, em 520 anos de descoberta colonizadora realizada pelos europeus. Trata-se de um dado significativo, uma vez que ao analisarmos as opressões sofridas pelas mulheres brasileiras em diversos aspectos de suas vidas, a ocupação de um espaço de representatividade como a presidência de um país parecia uma conquista inédita. Porém, estamos em 2020, em tempos sombrios, já que é necessário defender o óbvio, como dizia Bertolt Brecht, dramaturgo alemão perseguido pelo nazismo de Hitler na segunda guerra mundial. Mas por que mesmo acabou o mandato da presidenta?
Deputados comemoram após processo de impeachment de Dilma Rousseff ser aprovado na Câmara. Créditos da imagem: Agência Brasil.
Estamos em 2020. Mais de 127 mil mortos pela Covid-19 e 4.165.124,00 registros de casos confirmados pelo vírus. 4 milhões! A falta de um ministro da saúde no comando de um dos ministérios mais importantes para salvaguardar a vida da população brasileira, e, segundo processos jurídicos e de investigações criminais, envolvimento com milícias, depósitos inexplicáveis nas contas de familiares do presidente, a destruição das leis que fiscalizam a preservação da Amazônia, do Pantanal, a não demarcação de terras indígenas por direito, ataques constantes à imprensa, à educação, à cultura, a descoberta do gabinete do ódio com elaboração e propagação de fake news antes, durante e pós-campanha eleitoral, cenas de racismo, machismo e homofobia, religião como estratégia governamental, descobertas de subornos, ameaças a adversários políticos, luta contra o trabalhador não defendendo seus direitos e muito mais.
Não, estes não foram os motivos do impeachment de uma mulher presidenta, embora sejam crimes graves. Não foram os processos criminais e a irresponsabilidade administrativa as justificativas do impeachment. Este é o dia a dia do atual governo. Estamos em 2020.
Os motivos expressos votados por 61 senadores, dos quais 57 homens, foram os de “pedaladas fiscais e créditos suplementares[2]”. Diante de tantas improbidades administrativas e suspeitas de crimes de corrupção e de toda ordem, como podemos pensar que o real motivo do afastamento da presidenta tenha sido de fato os supracitados, já que são menores em relação aos do atual governo? Então qual motivo velado poderia estar nos bastidores?
Além dos interesses políticos de um grupo necessitado por poder, formado por homens, o motivo base em sua estrutura pode-se chamar de patriarcado. Trata-se de uma reflexão sobre gênero e poder. Esse termo tem sua etimologia na palavra grega pater, que significa pai, e arkher, que significa origem ou comando, isto é, pai no comando. A mulher ou mãe no comando é ousadia de uma brecha desse sistema social que mantém o homem no poder, assumindo as funções primárias, de liderança política e controle das propriedades. A mulher, por sua vez, é sua propriedade (BUTLER,2017) portanto, não há espaço para liderar na política. Esta deve assumir outros papéis diretamente ligados à maternidade e às funções do lar e de tudo que se refere a cuidar de algo ou alguém no âmbito micro e individual, e não a função macro de presidir e gerir um país, afinal trata-se de uma função grandiosa, administrativa, estratégica e intelectual, e estas características, por sua vez, não pertencem às mulheres, assim dizem as vozes do patriarcado. Estamos em 2020.
Um exemplo clássico do patriarcado é um olhar para dentro do seu próprio lar, caríssimo/a leitor/a. Quantas vezes você viu sua mãe, sua avó ou outras mulheres preparando o alimento da família, servindo à mesa, lavando e passando as roupas, arrumando a casa, enquanto o pai, ou o homem da casa, como é chamado, isto é, o que detém o domínio de determinado espaço, ficava assistindo TV ou olhando o celular, esperando tudo ficar pronto? É uma cena recorrente em muitos lares brasileiros, onde o mito da maternidade, domesticidade, castidade e passividade ainda perduram, e cuja distribuição de tarefas não é igualitária e, portanto, não é justa. Uma sobrecarga às mulheres, que além das funções estabelecidas de administrar a casa, a educação dos/as filhos/as, também assumiram a tarefa de gerir sua carreira profissional. Carreira profissional para as mulheres? Disse o patriarcado indignado. Seja doce, pura, bela e do lar, conforme o Mito da Beleza (WOLF, 2020). Insiste o patriarcado. Estamos em 2020.
Encarnar a beleza é uma obrigação para as mulheres, não para os homens, situação esta natural por ser biológica, sexual e evolutiva. Os homens fortes lutam pelas mulheres belas, e as mulheres belas têm mais sucesso na reprodução (…) NADA DISSO É VERDADE. A “beleza” é um sistema monetário semelhante ao padrão-ouro. Como qualquer sistema, ele é determinado pela política e, na era moderna no mundo ocidental, consiste no último e melhor conjunto de crenças a manter intacto o domínio masculino (WOLF, 2020, p. 29).
Em 2011 chega Dilma Rousseff como a primeira mulher chefe de Estado, presidenta do Brasil. Economista e com uma longa carreira política. Mulher, economista e com carreira política? Nova indignação do patriarcado. Não é bela, nem doce, nem recatada e nem do lar. Seu primeiro mandato foi até 2014, com uma gestão marcada por conflitos entre Poder Legislativo e Executivo. Consegue se reeleger para o mandato de 2014 a 2018. Entretanto, após mais conflitos em todos os poderes (formados em sua maioria por homens), crise econômica gerada pela falta de alianças internas e externas, Dilma é acusada por improbidade administrativa e o Congresso dos Deputados autoriza a abertura do processo de impeachment. Em seu lugar assume o vice-presidente Michel Temer, do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), e, em 2018, Jair Messias Bolsonaro (ex-membro do Partido Social Liberal – PSL) é eleito presidente do Brasil. O patriarcado respira aliviado. Estamos em 2020.
Os desafios das mulheres na política são muitos, desde o assédio, a estrutura partidária, a falta de recursos, os julgamentos, uma série de fatores que podemos chamar de violência política de gênero. Para a filósofa francesa Simone de Beauvoir, em sua obra O Segundo Sexo, de 1949, as mulheres ocupam a categoria do Outro. O outro é aquele que não pertence ao lugar, é um estrangeiro. Como exemplos, ela diz que o/a judeu/ia era um/a estrangeiro/a em relação aos alemães defensores da ‘raça ariana’, os/as negros/as são estrangeiros/as em relação aos brancos/as, os/as indígenas são estrangeiros/as em relação aos ‘civilizados/as’. Todos/as são estrangeiros/as em relação ao patriarcado.
Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente a declarar: “Sou uma mulher”. Essa verdade constitui o fundo sobre o qual se erguerá qualquer outra afirmação. Um homem não começa nunca por se apresentar como um indivíduo de determinado sexo: que seja homem é natural. […] O homem é o Sujeito, O Absoluto; Ela é o Outro (BEAUVOIR, 1970, p. 11).
Djamila Ribeiro, mulher negra brasileira, em sua obra Lugar de Fala, também pontua sobre esta invisibilidade, especialmente das mulheres negras. É como se a mulher não fosse pensada a partir de si, mas em comparação ao homem. Ela pontua também que “se não se nomeia uma realidade, nem sequer serão pensadas as melhorias para uma realidade que segue invisível” (p. 41). Estamos aqui nomeando os fatos, caríssimo/a leitor/a.
Podemos pensar então que as mulheres são estrangeiras na política? Será a política um universo masculino? Luciana Panke expõe em sua obra “Campanhas eleitorais para mulheres: desafios e tendências” sobre fatores sexistas e estereótipos de gênero que vão minimizar a mulher em seu espaço de fala e sobre essa associação direta da mulher a um apadrinhamento de um homem. Dessa forma, a mulher que ousar participar da política, que não cometa deslizes ou qualquer falha, senão estará fora, pressupõe o patriarcado. Dilma Rousseff, mesmo com toda a sua história e experiência, foi anunciada pelo apadrinhamento de Lula como candidata à presidência, e, por ser mulher, viu os erros do seu governo serem potencializados, culminando em 31 de agosto de 2016. Veio o Impeachment. Todos os outros políticos homens que estiveram antes ou depois na presidência do Brasil não sofreram tantos ataques explicitamente machistas, refutando sua capacidade intelectual ou administrativa. As mulheres precisam diariamente reivindicar sua própria humanidade. A luta é árdua, é resistência diária. Há esperança. O patriarcado se desconstrói aos poucos. Estamos em 2020.
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[1] Annie Martins é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora efetiva do Curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
[2] Apelido dado a um tipo de manobra contábil feita pelo Poder Executivo para cumprir as metas fiscais, fazendo parecer que haveria equilíbrio entre gastos e despesas nas contas públicas. No caso do governo Dilma Rousseff, o Tribunal de Contas da União entendeu que o Tesouro Nacional teria atrasado, voluntariamente, o repasse de recursos.
Referências:
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. Trad. Sergio Milliet. 4. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
PANKE, Luciana. Campanhas eleitorais para mulheres: desafios e tendências. 1. ed. Curitiba: Editora UFPR, 2016.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala: feminismos plurais. São Paulo: Polén Livros, 2019.
WOLF, Naomi. O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Trad. Waldéa Barcellos. 11. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Campos, 2020.