Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

E o Coro Trágico entoa: “Ai de nós! Por que o elegemos?”

 

Por Ricardo Philippi [1] 

 

Se os antigos gregos tivessem a tal da internet, talvez eles não teriam concebido o teatro trágico, mas criado as redes sociais. Afinal o espetáculo seria o mesmo, do mesmo modo trágico, onde diríamos em uníssono: “Aí de nós, presidente! Por que o elegemos?”.

Sei que parece meio confusa esta afirmação, mas vamos por partes, explicando primeiramente a origem do antigo teatro grego. Acontece que a base da tragédia é o chamado Coro Cênico, uma manifestação dramática formada por um grupo homogêneo de dançarinos, cantores e narradores que tomavam a palavra coletivamente para comentar o espetáculo trágico que estava se desenrolando diante de todos.

E aqui repito e destaco, um grupo para “comentar” a ação que estava se desenrolando diante de todos. Acontece que eles não eram participantes efetivos da ação e da dramaturgia, pois sua função era basicamente essa mesma, “comentar” acreditando participar do espetáculo maior.

 

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Representação do Coro Cênico grego.

Por isso afirmo que o Coro Cênico tinha a mesma função dramática que as redes sociais hoje possuem no espetáculo político. Esta função tem uma qualidade um tanto quanto flutuante que é explicada por Pavis (2008, p. 74) quando defende que a qualidade ambígua do Coro Cênico estava na “sua força catártica e de culto, de um lado, e seu poder distanciador, de outro”. Ora, podemos fazer esta mesma afirmação para as redes sociais.

Nesse sentido, tanto os atores do coro quando os seguidores das redes sociais têm a função de libertar, purificar e refletir as paixões do espetáculo, seja no espetáculo político, seja no espetáculo teatral. E, ao mesmo tempo, eles têm também a função de criar uma ilusão de que essas figuras disformes, opinativas, de massa, são personagens efetivos da ação… Só que eles não são, só “acham que são”.

Vamos um pouco mais a fundo. As origens do Coro Cênico podem ser rituais antigos com elementos de música e dança objetivando a reunião de pessoas. Embora as origens históricas da tragédia grega sejam obscuras, podemos afirmar que ela foi fundamental na formação tanto da religião quanto da arte, pois se tratava de uma nova forma de expressão e de narrativa estética. Em paralelo, representava a voz trágica do povo e refletia o pensamento político grego que, como é bem sabido, é a base da nossa democracia ocidental. O coro desempenharia a função de fornecer uma unidade artística ao pensamento dos cidadãos que contemplavam o espetáculo. Tal característica é possível de se conferir principalmente nas tragédias de Ésquilo e Sófocles.

Tais dramaturgos também se utilizavam do Coro Cênico para destacar os aspectos que lhes interessavam no espetáculo, quais pontos importantes se deviam debater, para que o público prestasse mais atenção a uma característica ou outra da tragédia. Ao fazer isto, eles criavam uma conexão mais profunda e significativa entre os personagens e a plateia, um tipo de dispositivo de controle da atmosfera e das expectativas do público. Os autores preparavam assim a plateia para momentos chaves da tragédia, criando impulso ou diminuindo o ritmo; sublinhando certos elementos e subestimando outros. Esse uso das funções estruturais do coro pode ser observado em muitas peças clássicas e foi se desenvolvendo ao longo da história do teatro ocidental.

Contudo, o interessante na nossa discussão é entender como o discurso base do Coro Cênico ainda opera no espetáculo político, afinal ele é composto por forças não individuais e personas abstratas que potencializam representações de interesses morais ou políticos, fortalecendo as ações e as paixões dos protagonistas. A questão é que o coro só é aceito pelo público:

[…] se este se constituir em uma massa solidificada por um culto, uma crença ou uma ideologia. Deve ser aceito espontaneamente como um jogo, ou seja, como um universo independente das regras conhecidas de todos nós, as quais não questionamos, uma vez que aceitamos a ela nos submeter (PAVIS, 2008, p. 73).

Ora, se entendermos a política como um espetáculo, do qual de um lado há diversos protagonistas, sejam políticos, influencers, personalidades etc., se digladiando virtualmente no Facebook, Instagram, Twitter, podemos ver a mesma função do Coro Cênico logo ali, abaixo, nos comentários dos posts.

Recentemente essas vozes se uniram em uníssono para perguntar “Presidente @jairbolsonaro, por que sua esposa, Michele, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz? ”. E aqui vem a questão, se não entrarmos especificamente no conteúdo deste dito, mas sim na forma dessa expressão, o que ouvimos não seria justamente o desejo de participação do povo no espetáculo, uma voz em coro que tenta se colocar em igualdade com a personagem principal? Isso não é justamente uma força coletiva, não individual e abstrata acreditando que faz parte do espetáculo político? Ou melhor, uma massa, que enquanto massa é homogênea, mas no individual não se sustenta, pois é um ser idealizado, um espectador ideal de diversas faces, tal qual comenta Schiller (1968, p. 252) a respeito do Coro Cênico: “o coro concretiza diante do espectador um outro espectador — juiz da ação, habilitado a comentá-la, um ‘espectador idealizado’“.

Justamente isso, esse espectador ideal está tanto nas redes sociais quanto no Coro Cênico, sustentando certos padrões morais e culturais a partir de uma voz coletiva. Realmente os gregos sabiam das coisas, já entendiam no que iria dar a rede social há mais de dois mil anos, um espaço de milhões de vozes que agem em massa, comentando o espetáculo político, repetindo aos milhares “Por que, presidente? ”.

Ora, essa própria frase reafirma que o protagonista da história não é o povo ou as vozes comentando o grande espetáculo político, mas sim o “presidente”, é a ele que se dirige essa pergunta. E assim, a questão continua no ar: “e os 89 mil de Fabrício Queiroz?”, contudo a resposta não pertence aos comentadores, ao Coro Cênico, mas obviamente àquele que responde.  Afinal, ele tem o poder de direcionar a dramaturgia e o enredo para onde mais lhe aprouver, pois, infelizmente, foi escolhido como o diretor deste espetáculo e o principal protagonista da nossa história.

 

 

[1] Ricardo Philippi é Doutorando em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

 

Referências bibliográficas:

ARISTÓTELES. Poética. Nova York: Forgotten Books, 2007.

CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: movimentos sociais na Era da Internet. São Paulo: Zahar, 2013.

GOMES, Wilson. Transformações da política na era da comunicação de massa. São Paulo: Paulus, 2004.

KITTO, H. D. F. Greek Tragedy: A Literary Study. New York: Routledge Press, 1990.

NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.

SCHILLER, Friedrich. Samtliche Werke. Munique: Winckler Verlag, 1968.