Grupo de pesquisa ligado à linha de Comunicação e Política do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.

Novelização da Política: as encenações do governo Bolsonaro

Por Lucas Gandin*

Já se tornou diário os telejornais e sites noticiosos veicularem algum acontecimento do governo Bolsonaro que no mínimo nos soa bizarro ou esdrúxulo. Não se trata de reportagens investigativas nas quais se descobriu algo obscuro ou da captação secreta de uma fala indevida ou ainda de um flagrante de comportamento nada republicano. São declarações, entrevistas, manifestações em redes sociais e vídeos de momentos da vida privada compartilhados publicamente que parecem ter sidos feitos deliberadamente para gerar o efeito que geraram. Para citar os mais recentes ou comuns: os diversos “rolês” do presidente, gerando aglomeração; as negativas de Bolsonaro em mostrar os resultados de seus exames para o Covid-19 e de dar transparência aos gastos de seu cartão corporativo; sua declaração à imprensa acerca da saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça; seu apoio às manifestações populares antidemocráticas e sua participação nelas; o descaso às vítimas do corona vírus; os ataques à imprensa; as inúmeras declarações preconceituosas e infundadas de seus ministros, principalmente o da Educação, Abraham Weintraub; a entrevista da Secretaria de Cultura, Regina Duarte à CNN; e o chá revelação no qual seu filho Eduardo Bolsonaro usou uma arma para descobrir o sexo do bebê que este espera com sua esposa.

Se esses eventos destoam do que se esperam da prática política dos governantes, como poderíamos explicá-los? A resposta, talvez, possa ser encontrada na incorporação das linguagens dos entretenimentos midiáticos à prática da Política. Gomes (2004) expõe que o campo da Política adotou os aparatos midiáticos quando percebeu neles a capacidade de romper barreiras e territórios. Se a comunicação mediada pelo jornal tinha como receptores apenas a população letrada, os meios de comunicação audiovisuais passaram a incorporar os analfabetos como público, possibilitando que os eventos do mundo da política chegassem a mais receptores.

Mas, para isso, continua o autor, as mensagens aderiram à linguagem audiovisual, caracterizada pelo espetáculo. Tudo é transformado pela máquina do entretenimento, tornando-se atraente, interessante, espetacular, passível de ser vendido ao espectador-cidadão. Além disso, os valores e a discussão dos interesses da instância cidadã se adéquam à imagem e ao texto curto, as ideias e os programas políticos se adaptam aos interesses do público-espectador, tornando-o audiência. Nesta linguagem, segundo o autor, a política estruturou estratégias que centram no consumo de imagens públicas, que usam técnicas de marketing e análise de opinião pública e que incorporam a gramática específica dos meios onde circulam. A transformação na estrutura das mensagens políticas nesses meios ocorre justamente porque o receptor de tais mensagens é, em grande parte, também o receptor de programas de entretenimento e lazer.

Manin (1995) atenta para o fato de que o próprio processo de representação mudou. Num primeiro havia identificação entre os indivíduos e o candidato devido aos elos locais que os aproximava. Posteriormente, essa identificação se ancorava nas relações dos cidadãos com os partidos políticos. A partir década de 1970, os eleitores passaram a confiar mais no desempenho individual do líder político. Assim, os programas políticos cederam lugar às imagens dos candidatos e toda a mensagem política passou a enfatizar sua personalidade.

Weber (2009) afirma que, a despeito de todo poder político de um candidato ou governante, ele depende da visibilidade da instância midiática. Para a autora, a instância política vive numa espécie de primado da imagem, que se fundamenta na credibilidade, no carisma e na representação política e simbólica de um ator político – é no simbólico, que a lógica da encenação e da visibilidade aparecem. Algo quase como o ditado “só é lembrado quem é visto”. Contudo, na arena da visibilidade a prática governamental, com seus atos administrativos e burocráticos, disputa espaço com programas mais atrativos, como novelas e reality shows.

Os eventos do governo Bolsonaro não só professam a linguagem do espetáculo, como adquirem contornos novelescos. A cada dia, um novo evento, continuação do anterior; um novo jogo de emoções e frases de impacto – “e daí?” disse o presidente sobre o número de mortos por Covid-19 no país. Cria-se o suspense, a expectativa, o mote para o dia seguinte: será que o presidente vai entregar os testes para o corona vírus? Será que o governo vai entregar a gravação da reunião ministerial que culminou na saída de Sergio Moro? No próximo capítulo!

Esse suspense também tem seu quê “humorístico”: na sexta-feira, 8 de maio, Bolsonaro anunciou que faria um churrasco no fim de semana para 30 convidado. No sábado, disse que o anúncio era fake – mas sábado é dia de programa humorístico na TV, dia de entretenimento, dia de riso. E de novos eventos: um passeio de jet ski no lago Paranoá, em Brasília, porque no fim de semana também são exibidos aqueles inúmeros programas esportivos, e o chá revelação de seu filho e sua nora, pois domingo também é dia de evento com a família.

Quando não é o presidente, são seus ministros e secretários. Weintraub volta e meia publica algum vídeo descontraído – com um guarda-chuva para se proteger da chuva de fake news contra o Ministério da Educação, fazendo referência a memes, etc. Há cenário, figurino, falas de impacto, tudo tal qual uma telenovela. Provavelmente um dos eventos recentes mais simbólicos foi a entrevista da secretária de Cultura, Regina Duarte, à CNN. Na entrevista, a (ex-)atriz deu um chilique quando a emissora exibiu um vídeo da atriz Maitê Proença cobrando ações efetivas de sua pasta e mostrou desdém com os casos de tortura e morte que ocorreram durante a ditadura militar, cantando uma música associada ao regime e dizendo que se morre todo dia e que outros regimes ditatoriais também promoveram tortura.

A entrevista de Regina Duarte traz alguns símbolos do processo de novelização implícitos que à primeira vista podem passar despercebidos. A secretária é conhecida pelo público-espectador por seus papéis em diversas novelas de renome da Rede Globo e, no evento, reproduziu dizeres presentes no discurso de Bolsonoro (apologia à ditadura, descaso). Sua cena de chilique foi muito similar aos fricotes do presidente à imprensa. Enquanto cantarolava a música “Pra frente, Brasil” gesticulava com os braços no ar, numa espécie de meia dança que conferia à cena trilha sonora e teatralização. Não era possível distinguir se era um ato fortuito ou uma atriz em pleno encenação de mais uma pantomima do governo.

Em suma, no lugar de políticos e administradores, o que se vê são atores, em vez de um discurso político afinado com o interesse público, um enredo para entreter o espectador e em vez de ações e planos de governo que visem a gerência do país e a solução dos problemas que afligem o Brasil, assistimos à encenação de programas a la stand up sem graça que tão só continuam num próximo capítulo.

*Doutor em Ciência Política (UFPR), Mestre em Comunicação (UFPR), Jornalista e Relações Públicas (UFPR)

Referências:

GOMES, W. Transformações da Política na Era da Comunicação de Massa. São Paulo: Paulus, 2004.

MANIN, B. As metamorfoses do governo representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 29, 1995.

WEBER, M. H. O estatuto da Imagem Pública na disputa política. Revista ECO-Pós, v. 12, n. 3, 2009.