Por Vivian Faria*
Pelo menos desde meados de março, quase um mês após o registro dos primeiros casos de Covid-19 no Brasil, a cloroquina – medicamento utilizado no tratamento de malária, lúpus e artrite reumatóide – ganhou lugar cativo na cobertura sobre a pandemia. Além das notícias sobre os dados da doença no país e no mundo, os desafios enfrentados em cada estado e as histórias de solidariedade em tempos de crise, a imprensa passou a publicar e veicular reportagens com as mais diversas abordagens sobre este medicamento.
Em meio a uma pandemia de uma doença até então desconhecida, não é de se estranhar que algum remédio tenha ganhado esse protagonismo na cobertura. Contudo, é interessante lançar um olhar atento para como isso se deu, pois, ao que tudo indica – e, aqui, é importante ressaltar que este ensaio não traz resultados de uma análise científica, mas observa alguns elementos que podem dar início a uma (ou até mais) -, o medicamento se tornou um assunto político.
Uma pesquisa rápida na página de dois dos principais jornais do país[1] mostram que a cloroquina começa a ser citada no fim de fevereiro. Na Folha, a primeira referência ao remédio foi feita no dia 25[2] daquele mês. Em duas linhas, uma reportagem sobre o avanço do coronavírus na Europa, explica que um estudo chinês mostrou que a cloroquina poderia ser eficaz no combate à Covid-19. No Estadão, o mesmo estudo é mencionado em um blog associado à editoria de cultura no dia 27[3].
Após essas menções, o medicamento só voltou a aparecer nos jornais no dia 19 de março[4], quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciou que havia autorizado a expansão dos testes com cloroquina e hidroxicloroquina no país. No Brasil, o anúncio foi seguido de uma corrida às farmácias, da falta do medicamento para quem precisa dele e de medidas para evitar que pessoas saudáveis comprassem o remédio, tudo noticiado. Dois dias depois de Trump, foi a vez do presidente Jair Bolsonaro exaltar a cloroquina e anunciar que o exército ampliaria a produção do medicamento em um vídeo publicado em seu perfil no Twitter[5].
São esses dois eventos que fazem com que a cloroquina se torne “um assunto”, tanto na internet[6] quanto nos jornais. Assim, o que se nota inicialmente é a influência da agenda política – cujos motivos também podem (e devido a outras posturas de Trump e Bolsonaro diante da pandemia talvez devam) ser analisados e discutidos – sobre a agenda pública e midiática. Essa interdependência entre as três agendas não é novidade: está prevista nas discussões mais recentes acerca da teoria do agendamento, originada nos estudos conduzidos por McCombs e Shaw nos anos 1960.
Conforme elas, os meios de comunicação agendam as discussões nas esferas política e pública, mas também podem ser pautados por elas – tanto que há estratégias específicas adotadas por políticos em períodos eleitorais ou não para tentar, usando um jargão da assessoria de imprensa, emplacar pautas em jornais e discussões entre os cidadãos. É o que se vê nesse caso.
Para além disso, porém, é preciso estar atento também à forma como o tema é abordado e definido nos jornais, aos termos em que o debate sobre ele ocorre, ou seja, é preciso observar como o tema é enquadrado. De acordo com a teoria do enquadramento, que, no campo da comunicação, se relaciona à teoria do agendamento, a partir da seleção e da ênfase em determinados aspectos de um tema, as notícias o delimitam e lançam um olhar específico sobre ele, contribuindo para direcionar a compreensão que os leitores/espectadores podem ter sobre ele e a relação que podem estabelecer entre o tema e a realidade.
Tratando-se de um assunto que não faz parte do senso comum – um medicamento de uso restrito – é de se esperar que parte das notícias veículadas sobre ele tenham uma abordagem científica, em que se explica como o remédio funciona no caso da Covid-19 e que resultados os testes têm obtido. Foi o caso dos textos intitulados “Pesquisas com hidroxicloroquina contra coronavírus ainda são preliminares”[7], da Folha, e “Droga usada para malária tem resultado positivo contra coronavírus; Anvisa faz ressalvas”[8], do Estadão.
Contudo, o tema também se tornou ponto de divergência entre Bolsonaro e o ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta – que acabou demitido, entre outros motivos, pela falta de alinhamento ao chefe do executivo -, sendo noticiado como tal. Na Folha, por exemplo, essa oposição é evidente nos textos “Bolsonaro manda exército produzir mais cloroquina”, publicada no dia 21, após a postagem do presidente no Twitter, e “Ministro da Saúde pede que população não use hidroxicloroquina”[9], do dia 22.
Aqui é relevante apontar que o pedido do ministro era para que pessoas não recorressem à automedicação ou fizessem uso do remédio como prevenção para a doença, mas a notícia evidencia que ele estava tratando o uso do medicamento contra a doença com mais cautela do que o presidente, já que as pesquisas são muito iniciais e os resultados são preliminares.
A partir disso, vieram as notícias com análises de especialistas sobre potenciais vantagens e riscos do uso do medicamento, com histórias de pacientes recuperados devido ao remédio e também daqueles que, apesar dele, não resistiram, e até com a opinião de representantes de outras áreas sobre o tratamento com cloroquina. Vieram também textos de opinião assinados por autoridades em saúde para defender, recomendar cautela ou condenar o uso amplo do remédio durante a pandemia. Nesse meio tempo, houve ainda outros dois pronunciamentos televisionados de Bolsonaro em que a cloroquina era novamente exaltada e uma repercussão intensa a eles – tudo, obviamente, noticiado.
Em suma, no que diz respeito à cloroquina, a cobertura parece ter se tornado um grande debate, com fatos que poderiam “depor” contra e a favor do medicamento, assim como opiniões contrárias e favoráveis de autoridades, mas também de pessoas que não são especialistas no assunto – debate esse que foi iniciado e alimentado por agentes políticos, pelo menos até a saída de Sérgio Moro do ministério da justiça, quando houve uma mudança de foco, a qual que veio acompanhada de maus resultados no uso de cloroquina para tratar a Covid-19[10][11]. Mais que isso, comentários em notícias publicadas na internet e nas redes sociais indicam que esse debate foi incorporado ao que acontece na esfera pública, chegando até a acirrar uma polarização já existente.
Assim, torna-se relevante lançar um olhar para esta parte da cobertura, analisando os tratamentos dados ao tema e observando se, de alguma forma, eles contribuíram para o gerenciamento da pandemia ou se serviram apenas aos objetivos dos atores políticos que pautaram o debate. Seria interessante também investigar os efeitos dessa cobertura em quem a consome, questionando a percepção dessas pessoas sobre o tema, a disputa criada em torno dele e os políticos envolvidos na cobertura, além de refletir sobre a abordagem mais adequada para esse e qualquer protocolo de tratamento testado em meio a uma pandemia – e se seria necessário dar a ele essa visibilidade ímpar quando há tantas outras questões relevantes a serem exploradas e discutidas.
*Vivian Faria é jornalista e mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná.
[1] Os veículos foram escolhidos pela sua relevância – medida em circulação nacional – e por possuírem mecanismos de busca que permitem pesquisas rápidas com delimitação de período. Contudo, conteúdo semelhante pode ser encontrado em outros jornais e portais.
[2] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/italia-tem-11-mortes-por-coronavirus-suica-croacia-e-austria-e-espanha-registram-primeiros-casos.shtml
[3] https://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte/droga-antimalaria-poderia-ser-a-solucao-para-o-coronavirus/
[4] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/trump-diz-que-hidroxicloroquina-remedio-para-malaria-pode-ser-testado-contra-coronavirus.shtml
[5] https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1241434576049840130
[6] De acordo com o Google Trends, até 18 de março o interesse dos usuários no termo “cloroquina” era próximo a zero. No dia 19, subiu repentinamente para 98 (o máximo é 100) e, desde então, varia, permanecendo sempre acima de 11.
[7] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/pesquisas-com-remedio-contra-coronavirus-ainda-sao-preliminares-afirmam-especialistas.shtml?origin=folha
[8] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,droga-usada-para-malaria-tem-resultado-positivo-contra-coronavirus,70003240466
[9] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/ministro-da-saude-pede-que-populacao-nao-use-hidroxicloroquina.shtml
[10] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/agencia-reguladora-dos-eua-emite-aviso-contra-o-uso-de-cloroquina-para-covid-19.shtml
[11] https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,estudo-feito-em-manaus-aponta-riscos-da-cloroquina-e-revista-medica-pede-cautela-com-droga,70003282306
Referências
AZEVEDO, F. A. Agendamento da Política. In: RUBIM, A. A. C. (Org.). Comunicação e política: conceitos e abordagens. Salvador: Edufba, 2004. p. 41-71.
CERVI, E. U.; MASSUCHIN, M. G.; TAVARES, C. Q. Agenda da mídia, dos políticos e do público na campanha eleitoral de 2010. Revista Debates, Porto Alegre, v.6, n.1, p.237-261, jan.-abr. 2012, p. 237-261.
ENTMAN, R. Framing: towards clarification of a fractured paradigm. Journal Communication, v. 43, n.4, 1993.
GADINI, S. L.; PISMEL, M. L. As manchetes jornalísticas nas páginas do Podemos: agendamento e singularidade. Rizoma, Santa Cruz do Sul, v. 5, n. 1, p. 64, agosto, 2017.
PORTO, M. Enquadramentos da Mídia e Política. In: RUBIM, A. A. C. (Org.). Comunicação e política: conceitos e abordagens. Salvador: Edufba, 2004. p. 73-104.